sábado, 19 de março de 2022

Escorregador, balanço e gangorra.

          
 
          
 
 
 
 
          Quando entrei na escola com cinco anos de idade era tímido e bem reservado, tinha amigos, mas não muitos, e encarar uma escola grande foi meio aterrorizante, mas sobrevivi, entre uma esquiva de bullying aqui e uma amizade ali. Me marcou a praça onde fazíamos o recreio, era grande, possuía diversos brinquedos: escorregadores, balanços e gangorras. Era um espação. Já adulto, quando a revi notei que não era tão grande assim.
          No primeiro recreio da escola fui até lá e estava cheia de crianças da minha idade, correndo, gritando, muitos já se conheciam de anos anteriores, eu era novato e ainda sem uma turma de amigos que fui pertencer nos dias seguintes, os colegas de aula. Lembro do cheiro que havia no ar, era início de março e alguma flor ou árvore estava em floração, até hoje quando sinto esse cheiro sou remetido aquela época, aos meus primeiros dias de aula, e não há como evitar, a lembrança é avassaladora.
          Da janela da minha casa, hoje, vejo uma pracinha. Está há uns 200 metros de distância, nela crianças brincando, correndo, rindo, entre gritos fininhos e infantis, algumas jogam bola, mas a maioria brinca nos escorregadores, balanços e gangorras, consigo ouvir algo de lá quando o movimento da cidade fica mais calmo, no meio da tarde, início da noite ou nos finais de semana e o ruído diminui.
         A cada ida e vinda do balanço na praça o mesmo ruído, metálico, agudo, repetitivo, de junções metálicas que não recebem lubrificação há um bom tempo ou lubrificação que o clima inclemente de sol e chuva já removeu. Ruído inconfundível. Não tenho controle. Sou enviado aos meus primeiros dias de aula quando ouvia esse mesmo som, e não só à aula, à minha infância onde este som era presente sempre, porque eu estava seguido na rua ou em uma praça brincando, em um tempo em que isso era o mais comum para uma criança e seus amigos, menos perigoso e sem supervisão adulta.
          Este som é o que mais representa a infância e o que dela deveria ficar: a brincadeira, a turma de amigos, a falta de compromisso com as horas, uma despreocupação com a vida. Às vezes me paraliso na janela de casa ouvindo os sons do balanço da pracinha e viajo no tempo, lembrando da infância em uma trilha sonora gerada pelas crianças de hoje, que são muito ou pouco diferentes das crianças que convivi na infância, mas ainda crianças, que se divertem, brincam, riem, compartilham o que há de mais maravilhoso na infância que é ser criança.

sábado, 10 de novembro de 2018

Os Gatos da Casa Abandonada.


 

 

 

          Todos os dias de manhã Dona Maria atravessava a rua bem defronte a sua casa. Depositava um pote com ração e outro com água fresca na calçada, junto a grade daquela casa abandonada, no quintal dela viviam quatro gatos que ficaram abandonados quando a dona deles faleceu há muitos anos.
         Na calçada desta casa abandonada sempre dormia um ou outro morador de rua, não atrapalhavam ninguém, nem eram importunados pela vizinhança ou pela Dona Maria. Quando acordavam perambulavam pelo bairro.
Um deles não acordou numa dessas manhãs frias. SAMU socorreu. Veio a falecer. Dona Maria nem viu a confusão, foi muito cedo, só estranhou que quando atravessou a rua e colocou o pote cheio de ração na calçada vieram cinco gatos do quintal da casa, um a mais do que ela estava acostumada a ver.
           Desde aquele dia, um gato se somou à turma dos gatos da casa abandonada. Dona Maria entendeu de onde eles surgiam e passou a cuidar com ainda mais carinho daqueles gatos.

sábado, 18 de novembro de 2017

Falando a Mesma Língua.




Tentarei ser claro.
Faltou gás no fogão de casa, liguei, o rapaz da entregadora perguntou:
-Quantas garrafas?
Eu disse:
-Garrafas? Preciso de um botijão só.
Ele:
-Já mando.
Resolvido o problema do gás fiquei sabendo que a entregadora chama os botijões de garrafas.
Saí de casa, peguei um ônibus, perguntei para o motorista porque demorou, ele disse que faltou condutor para um carro no terminal, traduzindo: ônibus é chamado de carro, final da linha é terminal e motorista é condutor.
O ônibus passou defronte a um prédio branco com uma cruz vermelha, na entrada do prédio estava escrito: Unidade Básica de Saúde (UBS), tradução: posto de saúde.
De volta para casa, entrevista de médico na TV, ele lascou: houve uma solução de continuidade na quinta falange distal do pé de um paciente, fui para o dicionário e traduzi: um corte no dedinho do pé.
Não resisti brincar com alguém, deixei um recado sobre a mesa de trabalho:

-Fui até o terminal pegar um carro com condutor para ir à UBS tratar de uma uma solução de continuidade na quinta falange distal por causa de uma garrafa.




Fonte da imagem: https://mac.appstorm.net/reviews/productivity-review/notestab-instant-note-taking-on-the-menu-bar

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A Velha Bola de Couro.




Dez meninos. Cinco para cada lado. No meio deles uma bola velha de couro com um gomo descosturado e saltado.
Campo de chão batido, irregular, poeirento, cheio de buracos.
Os postes da goleira eram feitos com a metade de um tijolo maciço.
Criançada se divertindo.
Tiros.
Um, dois.
Pausa.
Três, quatro cinco... dez tiros ao todo.
Fim de jogo, criançada saiu em disparada para o lado em que estavam olhando, apavorados.
Menos um, que correu, parou e voltou.
Era o dono da bola.
Tinha esquecido ela no meio do campo.
Voltou, pegou a bola e saiu correndo desesperado.
Levem tudo. Levem a vida, só não levem a velha bola de couro do menino.


Fonte da imagem: http://www.jbreed.com/portfolio/projects/kenya/Kenya_17_Hand.

 

domingo, 27 de setembro de 2015

Felicidade Na Próxima Página.


Sentada no sofá, diante da televisão com o Notebook no colo.
Revirou todos os canais da TV de cima para baixo, viu e ouviu todos, nada interessava. Internet mesma coisa, Facebook com textos de auto ajuda.
Desalentada, olhou para um lado... olhou para outro... e deu um profundo suspiro, sua vida já não era mais interessante, os dias passavam repetitivos, duros e sem sabor como um pão dormido.
Abriu o Bloco de Notas do Note para escrever uma estória, não a sua porque era chata demais, outra estória, com romance, drama, brigas, espionagem, sexo, música alta, um pouco de esperança e felicidade.
Criou os personagens. Carinho especial pelo protagonista: alto, bonito, bem falante, herói, realizador da sua fantasia, Príncipe Encantado do seu coração, sua esperança de felicidade.
A estória foi sendo bem contada, com idas e vindas, emoção, suspense, alegrias, tristezas, vinho tinto e pizza.
Chegada a hora de terminar a estória, pensou em matar o protagonista para tornar o texto mais emocionante.
Não.
Não conseguiu.
Não teve coragem de matar o protagonista, terminou a estória mandando o personagem para uma longa viagem.
Solução sábia, afinal, escreveu a estória para viver a felicidade que não sentia, matá-lo seria matar a sua própria felicidade.



Fonte da imagem: http://bigdata-madesimple.com

domingo, 30 de agosto de 2015

Jogo da Vida.



1) Dê um tubo de creme dental novo e peça para a pessoa colocar um pouco na escova de dentes.
-Se pressionar pela parte de baixo do tubo: 1 ponto.
-Se pressionar pelo meio do tubo ou perto da ponta: 0 ponto.

2) Peça à pessoa que parta uma cebola em dois e guarde na geladeira.
-Se ela colocar na geladeira as partes dentro de um pote: 1 ponto.
-Se ela colocar as duas partes soltas na geladeira: 0 ponto.

3) Peça para a pessoa fazer uma ligação telefônica pedindo para falar com alguém.
-Se ela se identificou antes de solicitar a outra pessoa: 1 ponto.
-Se só se identificou depois que foi perguntado seu nome: 0 ponto.

4) Peça à pessoa para pronunciar a palavra fralda.
-Se pronunciar corretamente: 1 ponto.
-Se pronunciar flarda ou qualquer outra variação sobre o tema: 0 ponto.

5) Peça para a pessoa para ler O Pequeno Príncipe.
-Se ela ler e entender: 1 ponto.
-Se ela ler e não entender: 0 ponto.

Se a pessoa somar 3 ou mais pontos pode continuar sua vida normalmente.
Se somar 2 pontos ou menos, ela deve voltar à casa anterior e aguardar três rodadas antes de voltar ao jogo.

Fazer beicinho ou bater com o pé no chão não fará retornar ao jogo.

Fonte da imagem: http://www.123rf.com/photo_33299592_stock-vector-gameboard-with-a-school-kids-theme.html

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Esculturas.



Terminou a sua última obra, estátua de um homem.
Organizou um jantar na sua casa para os amigos a apreciarem, antes de ser enviada para a exposição na galeria de arte.
Cada amigo que chegava fazia um comentário sobre a obra:
-"Pensava que fosse maior".
-"É careca"?
-"Porque não está em pé"?
-"E se ela fosse assim"?
-"E se ela fosse assado"?
Decidiu fazer uma cópia da estátua do homem representando cada observação feita pelos amigos.
As estátuas ficaram parecidas entre si, sem expressão e identidade.
Enviou todas as obras para a galeria de arte onde ocuparam lugares de destaque.
A estátua de sua inspiração foi a mais visitada, comentada e lembrada.
As demais obras, inspiradas nos amigos, foram vistas, mas não foram comentadas e nem lembradas. Nunca mais foram expostas. Há registro delas em fotos, não nos corações das pessoas.



*Texto em homenagem à querida amiga Vera Pinto que comete a insanidade de me estimular a escrever.

Fonte da imagem: http://www.decovista.nl/en/bodytalk-male-nude-sitting-bodybuilder.html

domingo, 20 de abril de 2014

Espelhos | sohlepsE




Morava sozinha e tinha cinco espelhos em casa. Quase um por peça.
Espelhos não mentem, todos refletiam a imagem de uma bela mulher, mesmo que estivesse recém acordada ou ao final de um dia cansativo.
Simpática, sociável, com amigos em todos os círculos em que se relacionava.
Nunca compreendeu porque estava sozinha.
O passar do tempo refletido no espelho a pressionava, se espantava com a pressa dele em envelhecê-la. Pele do rosto com algumas linhas tracejadas que só ela via, projetos de futuras rugas, estradas tristes do tempo.
Sozinha, saía à rua sem olhar para os lados, para não ver e não ser vista. Algumas conversas reais ou virtuais sem sabor, falsas promessas, sumiços inexplicáveis, seguia sem perspectiva afetiva.
Estava sentada na arquibancada vendo a vida passar.
Seu limite chegou, jogou fora todos os espelhos da casa, cansou da verdade fria que eles refletiam, belas e traiçoeiras imagens e foi para a rua sem se olhar em um espelho.
Passou a ver seu reflexo nas outras pessoas, imagens do seu rosto refletida nos olhos do moço bonito que olhou para ela na calçada, do seu corpo no sorriso amplo do vizinho, da sua alma no abraço firme do amigo.
Aceitou a si mesma nos outros.
Substituiu a ditadura do espelho pela democracia do risco de olhar e ser olhada.
Desistiu do conforto de pensar pela emoção de sentir.
Foi vista sorridente caminhando de mãos dadas em uma alameda de um grande shopping da cidade, passando diante de amplas vitrines envidraçadas sem procurar seu reflexo nelas.
Nunca mais comprou espelhos, nem os deu de presente a ninguém.

domingo, 30 de setembro de 2012

Estou Vivo.

Quando criei este blog, a intenção era postar, entre outras coisas, as minhas inquietudes, visão de vida e do mundo que me cercava. Algo mudou. Com o tempo meu espírito acalmou, muito do que queria dizer foi dito, ou por aqui ou por outros canais.
Com a chegada do Facebook minha rede de amigos se concentrou por lá e lá tenho me comunicado. Isto não quer dizer o fim deste espaço, é uma justificativa da sua inatividade, assim que a vida turbilhonar, de novo, isso aqui pode retornar à vida. Caso não volte à ativa fica como um depósito de ideias e sentimentos.
Obrigado pela visita e torne a voltar, nem que seja esporadicamente.

domingo, 24 de junho de 2012

As Respostas.





Eu preciso confessar que fui duro com meu pai e poupei a minha mãe. Eu perguntava demais, não era normal.
Com sete, oito anos de idade, eu enfileirava perguntas sobre qualquer assunto que me interessasse, e não me contentava com uma pergunta só sobre o assunto, eu queria entrar nele até o fundo e elegi meu pai como vítima porque era quem me dava trela. A mãe não entrava nessa, logo pulava fora, talvez pelas suas limitações culturais ou porque já me conhecia e não estava a fim de passar por uma tortura verbal e auditiva.
O tempo fez com que as perguntas diminuíssem de tamanho e as respostas aumentassem. Vi alguma coisa da vida, o suficiente para não me assustar com nenhuma manchete de jornal, descoberta de vida secreta dos outros, nem com meus próprios pensamentos: alguns inconfessáveis e incompreensíveis na minha adolescência e infância.
Entendo as pessoas porque me entendo e compreendo as diversas e, aparentemente, inexplicáveis atitudes dos outros por conta das respostas que a vida me deu.
Estou cansado para buscar algumas respostas, a maioria delas eu já sei e as que não sei, não sei se quero saber.
O  mundo não está chato, nem a vida, viver e conhecer os dois ainda os fazem interessantes, o que me cansa é querer saber tudo de tudo. Aquilo que não tem resposta traz em si a própria resposta, e tem um outro tanto de respostas que não quero saber, que fiquem lá onde estão, em seu próprio mundo, porque demorei para perceber que são respostas que não devem ser obtidas.
Nem tudo devemos saber, há respostas que não existem, que dóem, que são mentirosas.
Chegou a hora de respeitar o ensinamento da vida e parar de perseguir as respostas desnecessárias. 
Que os mais dispostos busquem as suas respostas, enquanto eu fico me entretendo com as minhas e que consomem o meu tempo.
Quando eu precisar de novas respostas as procurarei com o devido cuidado e sabedoria.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Liberdade & Omissão.




A Liberdade é como uma sombra, sempre tentamos tocá-la e nunca conseguimos.
Defendo a Liberdade como uma postura constante na minha vida, exceto nos raros momentos que ela tem que ser substituída por um ato de autoridade, que não me faz bem, mesmo que necessário.
Dou Liberdade a todos, em casa, no trabalho, nas amizades. Facilmente esta Liberdade é mal entendida, como se eu estivesse me omitindo. Errado. Deixo as pessoas livres para agirem e pensarem, não estou pedindo a elas que ajam ou pensem por mim. Não me sinto incapaz de gerir minhas atitudes e ideias, então, quando elas presumem que estou pedindo que ajam por mim, estou, apenas, dando-lhes a Liberdade de agirem como quiserem, mas sem invandir meu espaço, nem escolher por mim. É muita responsabilidade agir e pensar pelo outro, é algo para os pais, no curto período em que a criança é parcialmente incapaz disso.
Ser livre é uma ambição de todos, não usurpe.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Marquês Do Vale Do Silicone.



Não assisto ao Carnaval, no máximo uma ou outra cena, quando passo na sala à caminho da geladeira, para pegar um pouco de água gelada e iludir esse calor que Haroldo Lobo & Nássara cantaram na marchinha "Allah-Lá-Ô".
Vejo algumas fotos na Internet das tais musas do Carnaval. Todas usam próteses de silicone nos seios. A Marquês de Sapucaí se transformou no Silicon Valley tupiniquim, não aquele que produz chips e equipamentos de alta tecnologia, o outro, que sediava a Dow Corning, fabricante de referência da época para próteses de silicone.
Não se acha uma dama com seios naturais desfilando na avenida, todas que a mídia destaca estão equipadas com aqueles montes gêmeos saltados e artificiais que parecem duas metades de um coco colocadas por debaixo da pele. 
Mulher de verdade virou uma raridade e tem que fazer parte da Lista de Espécies Ameaçadas de Extinção do IBAMA. Precisamos criar uma ONG para defender as mulheres naturais, convocar o Greenpeace e fazer ações diretas em clínicas de cirurgia plástica para destruir as próteses, antes que tenhamos que admirar e desejar mulheres andróides saídas de uma linha de montagem, todas iguais, fugindo, desesperadamente, da beleza que a natureza lhes deu.
Mas me respondam com sinceridade: tem homem que gosta de apertar plástico? Tirando os plásticos bolhas que são vício mundial?
Nos afastamos cada vez mais do corpo humano em busca de um corpo idealizado, se o cara, na hora H, verificar que é de plástico dá para recusar? Eu não recusaria, mas dá vontade, me sentiria enganado, lembraria do Código do Consumidor, mesmo que o ato seja de graça, no amor.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Os Lençóis.




Abriu a porta do armário para tirar o lençol cuidadosamente dobrado.
O cheiro de Alfazema predominou e lembrou a sua infância, na casa da praia.
O vento nordeste à beira mar ventilando a memória.
Pegadas que as ondas apagavam, fatos que a memória recordava.
Odores que evocam lembranças, mais rápido que a música antiga que há anos não se ouve.
Pele ardendo do sol inclemente.
E umas rapadurinhas de leite compradas com centavos de Cruzeiros.
Preço baixo para lembranças tão caras.
E momentos breves de felicidade que se alongam com o tempo.
Que escapam sorrateiros entre uma tecla e outra do teclado esfomeado.
Que engole as palavras e devolve emoções.
Em uma batida sonora repetitiva e hipnótica na sucessão de palavras, afetos e carinhos.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Tri-álogos do dia-a-dia.

Senhora:
-Preciso de uma antena.
Eu:
-Antena interna ou externa?
Senhora:
-Não sei. Comprei uma TV nova de LSD...
Eu:
-Aham. Por aqui, senhora, por favor...

Tri-álogos do dia-a-dia.

Aponto a peça no mostruário e o cidadão manda ver:
-Tem uma mais grande?
Eu:
-Não.

Tri-álogos do dia-a-dia.

Cidadão:
-Onde fica essa tal loja?
Eu:
-"Quinta loja em direção ao Viaduto Obirici". Apontando para o local.
Cidadão:
-Viaduto? ... Ah, a ponte!
Eu:
-É.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Aromas e Matizes da Vida.




 Quarenta e tantos anos de idade. Ela vivia só, na monocórdia companhia de sua gata e uma perspectiva de vida que olha mais para o passado do que para o futuro.
Solidão, príncipes que se revelaram sapos de coaxar desafinado, família ausente, vizinhos fuxiqueiros e colegas de trabalho puxadores de tapete. Vivia com a sensação de que a vida lhe havia escapado por entre os dedos.
Hábitos rígidos: casa sempre arrumada, janelas fechadas, gata que saía à noite e voltava de dia, diversos relógios pela casa, todos com a hora precisamente ajustada até os segundos. Sua alma também era rígida, na angústia, desesperança, rabugice que alvorecia e um mau humor persistente.
A vida dela se resumia a ir trabalhar e o prazer da companhia de sua gata.
Naquele dia, a gata não havia retornado para casa ao amanhecer. Ouviu, pela janela, o comentário de vizinhas que viviam bem informadas que um gato havia sido atropelado na sua rua, um pouco mais acima de onde ela morava. Coração disparou, suou frio nas mãos e retornou a velha sensação de que iria morrer ali, sozinha, sem, ao menos, a companhia da gata. Reviveu a sua vida em instantes e nada de regozijável lhe veio à mente. Não tinha tempo para luto felino ou autocomiseração. Vestiu-se, tomou café, mecanicamente, e rumou para o trabalho. Não caminhou muito e sentiu as pernas fracas, tontura. Achou que não passaria dali e teria que ser levada por populares para o hospital, ou para o cemitério.
De longe, avistou a sua gata que estava do outro lado da rua, ela a fitava insistentemente. Com dificuldade, atravessou a rua para pegá-la, ela fugiu e entrou em uma loja de aromas exóticos e cores estranhas. Dentro daquela loja, que oferecia solução para os seus problemas, ela percebeu que, sozinha, jamais sairia da armadilha de vida que ela armou para si, nem que fosse uma gata para lhe mostrar que, na vida, há outros aromas e matizes que não apenas aqueles que permitimos entrarem pelos nossos sentidos.
O sentido da vida é, por vezes, não ter sentido nenhum ou o sentido é procurar o sentido a vida toda.

domingo, 25 de setembro de 2011

Ele Sabe Por Que Os Pássaros Voam.




Alguns pássaros voam em círculos ou em uma trajetória errante no céu. Não fazem por acaso e não estão apenas aproveitando as correntes de ar ascendentes. Crianças curiosas olham para o céu e vêem mais do que pássaros em vôo.
O menino observava os vôos dos pássaros, tinha uma capacidade singular de interpretar as manobras como se fossem mensagens. Quando menor, tentou explicar aos outros meninos e aos adultos do que era capaz, foi ridicularizado pelos primeiros e ignorado pelos últimos.
No caminho entre a casa e o colégio olhava para o céu, ansioso pelas mensagens que os pássaros enviavam, quando jogava bola com os amigos chamavam a atenção dele para o jogo, constantemente, de tanto que olhava para cima. Era considerado um menino que vivia no mundo da Lua por olhar tanto para o céu e se desligar da Terra.
Os pássaros desenhavam mensagens no céu todos os dias, conselhos sobre a vida, orientações sobre como o menino deveria agir, avisos de perigo e mensagens de apoio e ajuda. Algumas mensagens eram incompreensíveis, talvez mensagens destinadas a outras crianças que, como ele, possuíam a capacidade de entender o que significavam os vôos e que precisavam ser auxiliadas e orientadas em suas vidas.
Em casa, o menino teve que encarar uma situação difícil, seus pais estavam se separando, cada um moraria em uma casa e ele teria de decidir com qual dos pais viveria. Decisão difícil para quem pensava que a vida é brincar, comer e dormir, provação para o mundo dos adultos, não para ele, não naquela idade.
Resolveu olhar mais ainda para o céu no dia seguinte, quando teria que optar por viver com um dos pais. Foi e voltou para o colégio olhando para o céu. Nada de pássaros. Jogou bola à tarde como sempre fez, sem pássaros, sem vôos, sem gols. À noite sentiu-se abandonado, triste e desorientado sem as mensagens dos pássaros. Brigas em casa, pais incapazes de pensar nele, só em si mesmos. A decisão com quem morar estaria a cargo dos pais ou do acaso, tanto faz, estava sem condições de pensar no assunto. Dormiu.
Acordou cedo com raiva dos pássaros, o ajudavam tanto, porque, agora, o abandonaram quando precisava, sem uma mensagem, ainda que incompreensível? Os amigos e os adultos estavam com a razão? Os pássaros só voavam no céu?
Sábios, os pássaros não emitiram nenhuma mensagem no dia anterior ao da decisão. Foi uma lição. Um menino, ainda que jovem e inexperiente, precisa saber que a vida não é fácil como ele gostaria, há decisões duras nela, nem sempre há tempo e recursos para tomá-las com sabedoria. A vida é desgastante e solitária, só de vez em quando aparece uma mão amiga estendida para nos ajudar. A vida é, também, grande, azul e transformável como o imenso céu onde os pássaros escrevem suas mensagens, cabe a nós escrever, lá em cima, o nosso destino e optar por voar ao lado dos pássaros e entendê-los, ou observá-los, debaixo, pensando que são apenas pássaros voando.

A Reencarnação do Bode 2.


Texto revisado e alterado conforme sugestões dos colegas da Oficina de Iniciação à Prosa.




Ele foi contratado para a vaga de estoquista em uma empresa com cinquenta funcionários. Quase sessenta anos de idade, barriga saliente, calvo. No emprego anterior trabalhava sentado em um escritório. Os colegas estranharam a contratação de uma pessoa de idade para estoquista, naquela empresa, a função requeria esforço físico, carregar caixas pesadas, levantá-las e baixá-las no braço. Ele se adaptou com dificuldade ao trabalho pela demanda física. Era solícito e afável, sempre pronto a resolver todos os problemas do trabalho, inclusive aqueles que não eram sua função resolvê-los.
Rápido se tornou vítima de intrigas e era culpado pelo que não havia feito. Afinal, não reclamava de nada, não fazia queixas aos superiores, complacente, acomodado, figura preferida na empresa para receber a culpa por todos os erros do quadro de funcionários.
Houve um erro grande na empresa que levou à demissão dele ao final do período de experiência. Muitos colegas lamentaram, pois era boa pessoa e colega, outros, ficaram aliviados por se livrarem de um estorvo, alguns ficaram preocupados em encontrar um novo responsável pelos seus velhos e reincidentes erros.
Na reunião habitual, uma surpresa, o colega estoquista recém demitido estava presente, vestido de terno e gravata com o mesmo ar sereno e doce que todos estavam acostumados a ver no semblante dele. O Diretor da empresa, logo no início da reunião, acabou com a curiosidade de todos sobre a presença do ex-colega, explicou que ele havia sido readmitido como o chefe do Departamento De Pessoal da empresa, o período de experiência de três meses foi um truque para que o futuro chefe do Pessoal conhecesse a empresa, sua cultura e, principalmente, os funcionários, suas peculiaridades, personalidades, quem era bom, quem era ruim, quem trabalhava, quem fingia trabalhar, quem era a jararaca do setor, o burro, a lesma, a anta e o cavalo.
Aquele dia foi o último na empresa para alguns funcionários, para outros, dia de promoção, para um desafortunado, em especial, o dia que foi colocado, sem saber e sem saberem, no papel do novo bode expiatório da empresa.
No zoológico do trabalho, o melhor é ser o tratador dos animais.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A Reencarnação do Bode Expiatório.





Ele foi contratado para a vaga de estoquista em uma empresa com cinquenta funcionários. Quase sessenta anos de idade, barriga saliente, calvo. No emprego anterior trabalhava sentado em um escritório. Os colegas entranharam a contratação de uma pessoa de idade para estoquista, naquela empresa, a função requeria esforço físico, carregar caixas pesadas, levantá-las e baixá-las no braço. Ele se adaptou com dificuldade ao trabalho pela demanda física. Era solícito e afável, sempre pronto a resolver todos os problemas do trabalho, inclusive aqueles que não eram sua função resolvê-los.
Rápido se tornou vítima de intrigas e era culpado pelo que não havia feito, afinal, não reclamava de nada, não fazia queixas aos superiores, complacente, acomodado, figura preferida na empresa para receber a culpa por todos os erros do quadro de funcionários.
Um erro grande e fatal na empresa, ele, por consenso, era o suspeito – de todos - dos colegas de setor à direção. Incapaz de se defender acabou sendo demitido ao final do período de experiência pelos erros a ele atribuídos. Muitos colegas lamentaram, pois era boa pessoa e colega, outros, ficaram aliviados por se livrarem de um estorvo, alguns ficaram preocupados em encontrar um novo responsável pelos seus velhos e reincidentes erros.
Na reunião seguinte de todas as segundas às 8h da manhã, uma surpresa: o colega estoquista recém demitido estava presente, vestido de terno e gravata com o mesmo ar sereno e doce que todos estavam acostumados a ver no semblante dele quando era estoquista na empresa. O Diretor da empresa, logo no início da reunião, acabou com a curiosidade de todos sobre a presença do ex-colega, explicou que ele havia sido readmitido como o chefe do Departamento De Pessoal da empresa, o período de experiência de três meses foi um truque para que o futuro chefe do Pessoal conhecesse a empresa, sua cultura e, principalmente, os funcionários, suas peculiaridades, personalidades, quem era bom, quem era ruim, quem trabalhava, quem fingia trabalhar, quem era a jararaca do setor, o burro, a lesma, a anta e o cavalo.
Aquele dia foi o último na empresa para alguns funcionários, para outros, dia de promoção, para um desafortunado, em especial, o dia que foi colocado, sem saber e sem saberem, no papel do novo bode expiatório da empresa.
No zoológico do trabalho, o melhor é ser o tratador dos animais.