domingo, 23 de maio de 2010

Culpa. (Parte II da Necropsia).

Convivo com a culpa desde que nasci, culpa de tudo: do que fiz, do que não fiz, do que poderia ter feito.
Duas culpas se sobressaem na minha memória: como agi durante os últimos tempos de vida do pai e da mãe.
A mãe faleceu de uma enfermidade que durou uns poucos anos, eu não tive que cuidar dela, ficou a cargo do hospital, visitava todos os dias, cuidava da papelada, autorizava exames, cirurgias, ficava ao lado dela, ainda assim sinto-me culpado de não poder ter lhe dito o quanto eu a amava, culpado pelo que não fiz, pelo que poderia ter feito, apesar de ter feito tudo que era possível fazer.
O pai passou seus últimos tempos em casa, faleceu em uma clínica, fiz o que pude, não tentei fazer o que não pude e é disso que me sinto culpado.
Em momentos de lúcidez sei que fiz e dei o meu melhor para eles enquanto vivos. Não resolve: culpado.
A culpa me corrói por dentro, é implacável, sádica e incansável. Piora quando faço algo necessário para mim e que causa dor ou desconforto ao outro. Me tortura se despejo raiva no outro, mesmo que seja uma raiva educada e justa. Surge sempre para boicotar meu prazer e me arremessar em um mundo de trevas, sinistro, de autoflagelação. É tão cruel que me faz sentir culpado por falar e escrever sobre a Culpa. Não é ludibriável, ela consegue prever meus próximos passos e se antecipa a eles.
Não sei de onde vem, é antiga e complexa no meu Eu, mais que a ideologia judaico cristã. Eu a sinto e eu sofro com isso.
Não há jurado ou juiz que me absolva, a sentença é sempre a mesma no meu julgamento: interno culpado.

6 comentários:

cobra gande disse...

As vezes também me sinto culpado por coisas que poderia ter feito e não fiz que com certeza minha vida hoje seria bem melhor e mais confortável, tanto fisicamente quanto espiritualmente. Belo texto Mauro, gostaria de ter este dom para escrever como você.
Abraços

Dois Bits de Prosa disse...

É, assim vamos driblando a culpa e sua impertinência. Obrigado pela visita, volta sempre.

Lara disse...

Olha, eu tenho grande motivos para me culpar (e me arrepender) praticamente todos os dias (e em quase todos eles eu lembro da minha maior culpa), mas venho tentando me perdoar. E acho que é este o caminho: o perdão, para os outros e para nós mesmos. Fizemos o que podíamos. Fizemos o que o grau de nossa maturidade julgou ser a melhor solução naquele momento. Fizemos o que, naquele momento, se vislumbrou com o melhor que podíamos oferecer. O passado não nos pertence mais. O futuro menos ainda. Resta-nos o dia de hoje, para ser vivido da melhor maneira possível. É preciso ver a vida como um livro. E os capítulos de nossos erros já passaram. Viramos a página. Seja feliz hoje. Tenho certeza que você merece. Um beijo

Dois Bits de Prosa disse...

Nos perdoar seria dar espaço ao pequeno deus que há dentro de nós? Tenho momentos de lucidez onde sei que não tenho tanta culpa como dei a entender, outras vezes ela me assola. Obrigado pelas palavras, entraram, foram ouvidas. Beijo.

Lara disse...

o que preferes? dar espaço para o teu deusinho ou o teu diabinho. Depende do que cada um pretende fazer :o)

Dois Bits de Prosa disse...

Hora um, hora outro, alternando nas pick ups. :)