domingo, 20 de abril de 2014

Espelhos | sohlepsE




Morava sozinha e tinha cinco espelhos em casa. Quase um por peça.
Espelhos não mentem, todos refletiam a imagem de uma bela mulher, mesmo que estivesse recém acordada ou ao final de um dia cansativo.
Simpática, sociável, com amigos em todos os círculos em que se relacionava.
Nunca compreendeu porque estava sozinha.
O passar do tempo refletido no espelho a pressionava, se espantava com a pressa dele em envelhecê-la. Pele do rosto com algumas linhas tracejadas que só ela via, projetos de futuras rugas, estradas tristes do tempo.
Sozinha, saía à rua sem olhar para os lados, para não ver e não ser vista. Algumas conversas reais ou virtuais sem sabor, falsas promessas, sumiços inexplicáveis, seguia sem perspectiva afetiva.
Estava sentada na arquibancada vendo a vida passar.
Seu limite chegou, jogou fora todos os espelhos da casa, cansou da verdade fria que eles refletiam, belas e traiçoeiras imagens e foi para a rua sem se olhar em um espelho.
Passou a ver seu reflexo nas outras pessoas, imagens do seu rosto refletida nos olhos do moço bonito que olhou para ela na calçada, do seu corpo no sorriso amplo do vizinho, da sua alma no abraço firme do amigo.
Aceitou a si mesma nos outros.
Substituiu a ditadura do espelho pela democracia do risco de olhar e ser olhada.
Desistiu do conforto de pensar pela emoção de sentir.
Foi vista sorridente caminhando de mãos dadas em uma alameda de um grande shopping da cidade, passando diante de amplas vitrines envidraçadas sem procurar seu reflexo nelas.
Nunca mais comprou espelhos, nem os deu de presente a ninguém.

domingo, 30 de setembro de 2012

Estou Vivo.

Quando criei este blog, a intenção era postar, entre outras coisas, as minhas inquietudes, visão de vida e do mundo que me cercava. Algo mudou. Com o tempo meu espírito acalmou, muito do que queria dizer foi dito, ou por aqui ou por outros canais.
Com a chegada do Facebook minha rede de amigos se concentrou por lá e lá tenho me comunicado. Isto não quer dizer o fim deste espaço, é uma justificativa da sua inatividade, assim que a vida turbilhonar, de novo, isso aqui pode retornar à vida. Caso não volte à ativa fica como um depósito de ideias e sentimentos.
Obrigado pela visita e torne a voltar, nem que seja esporadicamente.

domingo, 24 de junho de 2012

As Respostas.





Eu preciso confessar que fui duro com meu pai e poupei a minha mãe. Eu perguntava demais, não era normal.
Com sete, oito anos de idade, eu enfileirava perguntas sobre qualquer assunto que me interessasse, e não me contentava com uma pergunta só sobre o assunto, eu queria entrar nele até o fundo e elegi meu pai como vítima porque era quem me dava trela. A mãe não entrava nessa, logo pulava fora, talvez pelas suas limitações culturais ou porque já me conhecia e não estava a fim de passar por uma tortura verbal e auditiva.
O tempo fez com que as perguntas diminuíssem de tamanho e as respostas aumentassem. Vi alguma coisa da vida, o suficiente para não me assustar com nenhuma manchete de jornal, descoberta de vida secreta dos outros, nem com meus próprios pensamentos: alguns inconfessáveis e incompreensíveis na minha adolescência e infância.
Entendo as pessoas porque me entendo e compreendo as diversas e, aparentemente, inexplicáveis atitudes dos outros por conta das respostas que a vida me deu.
Estou cansado para buscar algumas respostas, a maioria delas eu já sei e as que não sei, não sei se quero saber.
O  mundo não está chato, nem a vida, viver e conhecer os dois ainda os fazem interessantes, o que me cansa é querer saber tudo de tudo. Aquilo que não tem resposta traz em si a própria resposta, e tem um outro tanto de respostas que não quero saber, que fiquem lá onde estão, em seu próprio mundo, porque demorei para perceber que são respostas que não devem ser obtidas.
Nem tudo devemos saber, há respostas que não existem, que dóem, que são mentirosas.
Chegou a hora de respeitar o ensinamento da vida e parar de perseguir as respostas desnecessárias. 
Que os mais dispostos busquem as suas respostas, enquanto eu fico me entretendo com as minhas e que consomem o meu tempo.
Quando eu precisar de novas respostas as procurarei com o devido cuidado e sabedoria.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Liberdade & Omissão.




A Liberdade é como uma sombra, sempre tentamos tocá-la e nunca conseguimos.
Defendo a Liberdade como uma postura constante na minha vida, exceto nos raros momentos que ela tem que ser substituída por um ato de autoridade, que não me faz bem, mesmo que necessário.
Dou Liberdade a todos, em casa, no trabalho, nas amizades. Facilmente esta Liberdade é mal entendida, como se eu estivesse me omitindo. Errado. Deixo as pessoas livres para agirem e pensarem, não estou pedindo a elas que ajam ou pensem por mim. Não me sinto incapaz de gerir minhas atitudes e ideias, então, quando elas presumem que estou pedindo que ajam por mim, estou, apenas, dando-lhes a Liberdade de agirem como quiserem, mas sem invandir meu espaço, nem escolher por mim. É muita responsabilidade agir e pensar pelo outro, é algo para os pais, no curto período em que a criança é parcialmente incapaz disso.
Ser livre é uma ambição de todos, não usurpe.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Marquês Do Vale Do Silicone.



Não assisto ao Carnaval, no máximo uma ou outra cena, quando passo na sala à caminho da geladeira, para pegar um pouco de água gelada e iludir esse calor que Haroldo Lobo & Nássara cantaram na marchinha "Allah-Lá-Ô".
Vejo algumas fotos na Internet das tais musas do Carnaval. Todas usam próteses de silicone nos seios. A Marquês de Sapucaí se transformou no Silicon Valley tupiniquim, não aquele que produz chips e equipamentos de alta tecnologia, o outro, que sediava a Dow Corning, fabricante de referência da época para próteses de silicone.
Não se acha uma dama com seios naturais desfilando na avenida, todas que a mídia destaca estão equipadas com aqueles montes gêmeos saltados e artificiais que parecem duas metades de um coco colocadas por debaixo da pele. 
Mulher de verdade virou uma raridade e tem que fazer parte da Lista de Espécies Ameaçadas de Extinção do IBAMA. Precisamos criar uma ONG para defender as mulheres naturais, convocar o Greenpeace e fazer ações diretas em clínicas de cirurgia plástica para destruir as próteses, antes que tenhamos que admirar e desejar mulheres andróides saídas de uma linha de montagem, todas iguais, fugindo, desesperadamente, da beleza que a natureza lhes deu.
Mas me respondam com sinceridade: tem homem que gosta de apertar plástico? Tirando os plásticos bolhas que são vício mundial?
Nos afastamos cada vez mais do corpo humano em busca de um corpo idealizado, se o cara, na hora H, verificar que é de plástico dá para recusar? Eu não recusaria, mas dá vontade, me sentiria enganado, lembraria do Código do Consumidor, mesmo que o ato seja de graça, no amor.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Os Lençóis.




Abriu a porta do armário para tirar o lençol cuidadosamente dobrado.
O cheiro de Alfazema predominou e lembrou a sua infância, na casa da praia.
O vento nordeste à beira mar ventilando a memória.
Pegadas que as ondas apagavam, fatos que a memória recordava.
Odores que evocam lembranças, mais rápido que a música antiga que há anos não se ouve.
Pele ardendo do sol inclemente.
E umas rapadurinhas de leite compradas com centavos de Cruzeiros.
Preço baixo para lembranças tão caras.
E momentos breves de felicidade que se alongam com o tempo.
Que escapam sorrateiros entre uma tecla e outra do teclado esfomeado.
Que engole as palavras e devolve emoções.
Em uma batida sonora repetitiva e hipnótica na sucessão de palavras, afetos e carinhos.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Tri-álogos do dia-a-dia.

Senhora:
-Preciso de uma antena.
Eu:
-Antena interna ou externa?
Senhora:
-Não sei. Comprei uma TV nova de LSD...
Eu:
-Aham. Por aqui, senhora, por favor...

Tri-álogos do dia-a-dia.

Aponto a peça no mostruário e o cidadão manda ver:
-Tem uma mais grande?
Eu:
-Não.

Tri-álogos do dia-a-dia.

Cidadão:
-Onde fica essa tal loja?
Eu:
-"Quinta loja em direção ao Viaduto Obirici". Apontando para o local.
Cidadão:
-Viaduto? ... Ah, a ponte!
Eu:
-É.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Aromas e Matizes da Vida.




 Quarenta e tantos anos de idade. Ela vivia só, na monocórdia companhia de sua gata e uma perspectiva de vida que olha mais para o passado do que para o futuro.
Solidão, príncipes que se revelaram sapos de coaxar desafinado, família ausente, vizinhos fuxiqueiros e colegas de trabalho puxadores de tapete. Vivia com a sensação de que a vida lhe havia escapado por entre os dedos.
Hábitos rígidos: casa sempre arrumada, janelas fechadas, gata que saía à noite e voltava de dia, diversos relógios pela casa, todos com a hora precisamente ajustada até os segundos. Sua alma também era rígida, na angústia, desesperança, rabugice que alvorecia e um mau humor persistente.
A vida dela se resumia a ir trabalhar e o prazer da companhia de sua gata.
Naquele dia, a gata não havia retornado para casa ao amanhecer. Ouviu, pela janela, o comentário de vizinhas que viviam bem informadas que um gato havia sido atropelado na sua rua, um pouco mais acima de onde ela morava. Coração disparou, suou frio nas mãos e retornou a velha sensação de que iria morrer ali, sozinha, sem, ao menos, a companhia da gata. Reviveu a sua vida em instantes e nada de regozijável lhe veio à mente. Não tinha tempo para luto felino ou autocomiseração. Vestiu-se, tomou café, mecanicamente, e rumou para o trabalho. Não caminhou muito e sentiu as pernas fracas, tontura. Achou que não passaria dali e teria que ser levada por populares para o hospital, ou para o cemitério.
De longe, avistou a sua gata que estava do outro lado da rua, ela a fitava insistentemente. Com dificuldade, atravessou a rua para pegá-la, ela fugiu e entrou em uma loja de aromas exóticos e cores estranhas. Dentro daquela loja, que oferecia solução para os seus problemas, ela percebeu que, sozinha, jamais sairia da armadilha de vida que ela armou para si, nem que fosse uma gata para lhe mostrar que, na vida, há outros aromas e matizes que não apenas aqueles que permitimos entrarem pelos nossos sentidos.
O sentido da vida é, por vezes, não ter sentido nenhum ou o sentido é procurar o sentido a vida toda.

domingo, 25 de setembro de 2011

Ele Sabe Por Que Os Pássaros Voam.




Alguns pássaros voam em círculos ou em uma trajetória errante no céu. Não fazem por acaso e não estão apenas aproveitando as correntes de ar ascendentes. Crianças curiosas olham para o céu e vêem mais do que pássaros em vôo.
O menino observava os vôos dos pássaros, tinha uma capacidade singular de interpretar as manobras como se fossem mensagens. Quando menor, tentou explicar aos outros meninos e aos adultos do que era capaz, foi ridicularizado pelos primeiros e ignorado pelos últimos.
No caminho entre a casa e o colégio olhava para o céu, ansioso pelas mensagens que os pássaros enviavam, quando jogava bola com os amigos chamavam a atenção dele para o jogo, constantemente, de tanto que olhava para cima. Era considerado um menino que vivia no mundo da Lua por olhar tanto para o céu e se desligar da Terra.
Os pássaros desenhavam mensagens no céu todos os dias, conselhos sobre a vida, orientações sobre como o menino deveria agir, avisos de perigo e mensagens de apoio e ajuda. Algumas mensagens eram incompreensíveis, talvez mensagens destinadas a outras crianças que, como ele, possuíam a capacidade de entender o que significavam os vôos e que precisavam ser auxiliadas e orientadas em suas vidas.
Em casa, o menino teve que encarar uma situação difícil, seus pais estavam se separando, cada um moraria em uma casa e ele teria de decidir com qual dos pais viveria. Decisão difícil para quem pensava que a vida é brincar, comer e dormir, provação para o mundo dos adultos, não para ele, não naquela idade.
Resolveu olhar mais ainda para o céu no dia seguinte, quando teria que optar por viver com um dos pais. Foi e voltou para o colégio olhando para o céu. Nada de pássaros. Jogou bola à tarde como sempre fez, sem pássaros, sem vôos, sem gols. À noite sentiu-se abandonado, triste e desorientado sem as mensagens dos pássaros. Brigas em casa, pais incapazes de pensar nele, só em si mesmos. A decisão com quem morar estaria a cargo dos pais ou do acaso, tanto faz, estava sem condições de pensar no assunto. Dormiu.
Acordou cedo com raiva dos pássaros, o ajudavam tanto, porque, agora, o abandonaram quando precisava, sem uma mensagem, ainda que incompreensível? Os amigos e os adultos estavam com a razão? Os pássaros só voavam no céu?
Sábios, os pássaros não emitiram nenhuma mensagem no dia anterior ao da decisão. Foi uma lição. Um menino, ainda que jovem e inexperiente, precisa saber que a vida não é fácil como ele gostaria, há decisões duras nela, nem sempre há tempo e recursos para tomá-las com sabedoria. A vida é desgastante e solitária, só de vez em quando aparece uma mão amiga estendida para nos ajudar. A vida é, também, grande, azul e transformável como o imenso céu onde os pássaros escrevem suas mensagens, cabe a nós escrever, lá em cima, o nosso destino e optar por voar ao lado dos pássaros e entendê-los, ou observá-los, debaixo, pensando que são apenas pássaros voando.

A Reencarnação do Bode 2.


Texto revisado e alterado conforme sugestões dos colegas da Oficina de Iniciação à Prosa.




Ele foi contratado para a vaga de estoquista em uma empresa com cinquenta funcionários. Quase sessenta anos de idade, barriga saliente, calvo. No emprego anterior trabalhava sentado em um escritório. Os colegas estranharam a contratação de uma pessoa de idade para estoquista, naquela empresa, a função requeria esforço físico, carregar caixas pesadas, levantá-las e baixá-las no braço. Ele se adaptou com dificuldade ao trabalho pela demanda física. Era solícito e afável, sempre pronto a resolver todos os problemas do trabalho, inclusive aqueles que não eram sua função resolvê-los.
Rápido se tornou vítima de intrigas e era culpado pelo que não havia feito. Afinal, não reclamava de nada, não fazia queixas aos superiores, complacente, acomodado, figura preferida na empresa para receber a culpa por todos os erros do quadro de funcionários.
Houve um erro grande na empresa que levou à demissão dele ao final do período de experiência. Muitos colegas lamentaram, pois era boa pessoa e colega, outros, ficaram aliviados por se livrarem de um estorvo, alguns ficaram preocupados em encontrar um novo responsável pelos seus velhos e reincidentes erros.
Na reunião habitual, uma surpresa, o colega estoquista recém demitido estava presente, vestido de terno e gravata com o mesmo ar sereno e doce que todos estavam acostumados a ver no semblante dele. O Diretor da empresa, logo no início da reunião, acabou com a curiosidade de todos sobre a presença do ex-colega, explicou que ele havia sido readmitido como o chefe do Departamento De Pessoal da empresa, o período de experiência de três meses foi um truque para que o futuro chefe do Pessoal conhecesse a empresa, sua cultura e, principalmente, os funcionários, suas peculiaridades, personalidades, quem era bom, quem era ruim, quem trabalhava, quem fingia trabalhar, quem era a jararaca do setor, o burro, a lesma, a anta e o cavalo.
Aquele dia foi o último na empresa para alguns funcionários, para outros, dia de promoção, para um desafortunado, em especial, o dia que foi colocado, sem saber e sem saberem, no papel do novo bode expiatório da empresa.
No zoológico do trabalho, o melhor é ser o tratador dos animais.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A Reencarnação do Bode Expiatório.





Ele foi contratado para a vaga de estoquista em uma empresa com cinquenta funcionários. Quase sessenta anos de idade, barriga saliente, calvo. No emprego anterior trabalhava sentado em um escritório. Os colegas entranharam a contratação de uma pessoa de idade para estoquista, naquela empresa, a função requeria esforço físico, carregar caixas pesadas, levantá-las e baixá-las no braço. Ele se adaptou com dificuldade ao trabalho pela demanda física. Era solícito e afável, sempre pronto a resolver todos os problemas do trabalho, inclusive aqueles que não eram sua função resolvê-los.
Rápido se tornou vítima de intrigas e era culpado pelo que não havia feito, afinal, não reclamava de nada, não fazia queixas aos superiores, complacente, acomodado, figura preferida na empresa para receber a culpa por todos os erros do quadro de funcionários.
Um erro grande e fatal na empresa, ele, por consenso, era o suspeito – de todos - dos colegas de setor à direção. Incapaz de se defender acabou sendo demitido ao final do período de experiência pelos erros a ele atribuídos. Muitos colegas lamentaram, pois era boa pessoa e colega, outros, ficaram aliviados por se livrarem de um estorvo, alguns ficaram preocupados em encontrar um novo responsável pelos seus velhos e reincidentes erros.
Na reunião seguinte de todas as segundas às 8h da manhã, uma surpresa: o colega estoquista recém demitido estava presente, vestido de terno e gravata com o mesmo ar sereno e doce que todos estavam acostumados a ver no semblante dele quando era estoquista na empresa. O Diretor da empresa, logo no início da reunião, acabou com a curiosidade de todos sobre a presença do ex-colega, explicou que ele havia sido readmitido como o chefe do Departamento De Pessoal da empresa, o período de experiência de três meses foi um truque para que o futuro chefe do Pessoal conhecesse a empresa, sua cultura e, principalmente, os funcionários, suas peculiaridades, personalidades, quem era bom, quem era ruim, quem trabalhava, quem fingia trabalhar, quem era a jararaca do setor, o burro, a lesma, a anta e o cavalo.
Aquele dia foi o último na empresa para alguns funcionários, para outros, dia de promoção, para um desafortunado, em especial, o dia que foi colocado, sem saber e sem saberem, no papel do novo bode expiatório da empresa.
No zoológico do trabalho, o melhor é ser o tratador dos animais.

domingo, 4 de setembro de 2011

Prólogo Do Filme "Anticristo".



A corda imaginária está esticada, Eros oposto a Tánatos.
A água cai, molha os corpos nus. Desejo. A neve cai. Fria.
Enquanto o amor acontece, há dor, tristeza e desespero, multivalências encobertas pela necessidade, desejo e angústia. E não basta o amor penetrar no outro, ele, mesmo assim, permanece, só, com sua maldição.
Enquanto o mundo gira, a roupa gira na máquina de lavar, o relógio gira, a roda gigante gira, amor e morte se constroem, se desenvolvem e acabam, como uma vida recém reproduzida, como o fim de tudo.
Tempo paralisado, congelado em emoções. Um pequeno corpo se movimenta. Quanto tempo demora para alguém se dar conta? E como se conta o tempo? Quando do prazer, o tempo se refugia no nada.
O amor é intolerável e o desejo insaciável, busca uma janela para fugir e satisfazer. A vida é onipotente, nem a dor, a tristeza e o desespero podem com ela. Melhor que a vida é a possibilidade do que há além dela. Sem freios, a felicidade é uma possibilidade tão próxima quanto o ar que respira, tão inalcançável quanto ela mesma.
A neve do chão sobe, o prazer atinge o limite. Fim
A corda imaginária se rompe, nem Eros, nem Tánatos, nem vida, nem morte, só alguém.


sábado, 3 de setembro de 2011

Tocou O Sinal Para O Recreio.

Olha, vou ser bem sincero, não gostei dos meus textos escritos como exercícios para a Oficina. Os argumentos estão razoáveis, tem um ou outro mais criativo, o problema está no desenvolvimento deles. Escrevo de forma óbvia, previsível e formal, pareço um trem que nunca sai dos trilhos, que não se aventura por outras terras, serras, planícies, praias, que não experimenta parar em outras estações e ainda é movido à carvão, ou, talvez, eu escreva como um cavalo de padeiro que já sabe de cor o caminho para entregar o pão, o padeiro só precisa mandar ele andar ou parar.
Para que eu escreva algo melhor de se ler é preciso, primeiro, desconectar o texto da minha personalidade, porque escrevo da forma que eu sou, devo deixar o formalismo e o rigor fora do texto, acrescentar ginga, aleatoriedade, umas palavras menos sisudas, fugir um pouco da realidade fria, não me preocupar com o perfeccionismo que me persegue como o trem ou o cavalo do padeiro.
Outra coisa: preciso escrever como se estivesse brincando, com sorriso nas mãos, alegria, desprendimento, sem preocupação com crítica. Escrita livre, refletindo meu pensamento. Tenho que usar o que aprendi na Oficina e fazer o tema de casa na hora do recreio.
E que esse seja o último texto que faço vestindo smoking.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Oficina "Iniciação à Palavra em Prosa". Exercício N°2.


Exercício a partir de bilhetes encontrados na rua.

 Código de Barras.



Velhinha, mais de 70 anos de idade, escorregou e caiu em casa, fraturou o fêmur e está impossibilitada de andar. Tem uma netinha de quem gosta muito e é recíproco o amor. Gosta de pé de moleque, viu no panfleto do supermercado que havia uma promoção com pé de moleque barato, pegou um pedaço de papel, anotou o pedido: pé de moleque, 260g e o número que fica abaixo do código de barras 78911030488494, entregou à neta e pediu a ela que fosse ao supermercado comprar.
Duas horas depois, já de volta do super, a neta, constrangida, disse à velhinha que não havia encontrado o pé de moleque, na loja que havia dentro do supermercado só havia meias para pés até o número 43 e não para aquele pé com um número tão grande: 78911030488494.




Balancete.

(Anotação encontrada no chão, após dois dias de chuva, bordas carcomidas e papel poído pela ação do clima, ainda assim, a tinta estava intacta.)


A vida lhe foi generosa durante anos, tudo do bom e do melhor, sem se preocupar com quanto ela custava.
Dias ruins se seguiram, novo emprego ganhando menos, doenças na família, gastos acima do suportável. A vida financeira virou um caos, tudo tinha que ser controlado, não sobrava grana para quase nada. Para fazer o super, uma calculadora determinava o limite, ao chegar em casa, contas para ver o quanto ainda lhe restara de dinheiro.
Como prova de anos mais gordos, havia uma caneta, cara, tinta boa. Um bilhete seu havia sido encontrado no chão por um gaiato, depois de ter passado dias, ali, recebendo chuva e vento, ainda assim a tinta da caneta se mantinha intacta, mostrando os números de uma conta financeira simples.
Assim como a sua caneta era boa, reminiscência de tempos melhores, ele mantinha em seu poder, conhecimento, inteligência e experiência, lastros valiosos que lhe permitiriam, novamente, ascender na vida e poder usar sua caneta para preencher documentos mais importantes e decisivos, fechar negócios que lhe proporcionariam uma vida bem melhor que a atual.

domingo, 21 de agosto de 2011

Oficina "Iniciação à Palavra em Prosa". Exercício N°1.

Vou usar o blog para publicar meus textos de exercício da Oficina de prosa que me referi no post anterior, podem ficar sem nexo porque a tarefa não está explicada, será um laboratório de textos, tipo uma cozinha, cheia de ideias, pratos sujos, cheiros apetitosos e chamas acesas.

Textos criados com base em material recebido na Oficina.


Canhoto do Cheque.
Ele está dividido entre dois amores que aniversariam nesta semana, resolveu dar um presente a cada uma delas, simples, tocante. Queria que a compra, a entrega e o recebimento do presente ajudassem na difícil escolha por qual amor optaria.
Foi à uma grande loja de departamentos, daquelas que tem de tudo, procurou, escolheu, comprou. Dois presentes. Pagou por eles com um cheque R$ 82,50. Anotou no canhoto do talão: lotérica, porque queria fazer segredo da compra, afinal, daquela loja sairia seu maior prêmio.

Recibo FGTS.
Assustado, com pressa. Ele estava trocando de emprego. Inseguro, temia que se arrependesse, não se adaptasse ao novo emprego ou que a nova empresa não o quisesse após o período de experiência. Amigos se dividiam entre apoiar a mudança ou criticá-la, chegou ao terminal da Caixa Econômica para ver se estava disponível o pagamento do FGTS relativo à saída do antigo emprego, acordo feito com o antigo patrão. Recebeu o papel impresso pelo terminal e leu: "Não Existe Pagamento Disponível", agradeceu ao frio terminal computadorizado porque ainda restava uma ligação, frágil, com o antigo emprego, quem sabe não seria o caso de voltar a trabalhar lá?

Cupom do Estacionamento.
Havia passeado no shopping durante o final de semana, lá, perdeu seus documentos, ficou apavorado até que recebeu um telefonema da administração do shopping informando que seus documentos haviam sido encontrados e estavam à sua disposição para serem retirados. Estacionou seu carro no estacionamento do shopping, buscou os documentos na administração e se permitiu tomar um sorvete na praça de alimentação, simples, porém delicioso. Terminou, saiu, até que um cliente da sorveteria lhe chamou atenção, seus documentos recém resgatados na administração do shopping tinham ficado sobre a mesa, retornou, pego-os e foi embora, tranquilo, sorridente e satisfeito, já havia perdido seus documentos mais de uma dezena de vezes, mesmo, mas sorvete como aquele nunca havia experimentado.

Lista De Coisas Para Fazer.
Tanta coisa para fazer em uma só manhã de quarta feira. Ela é dona de uma empresa de eventos infantis, é bolo, decoração, local, limpeza, mais os eventos de casa: filhos pequenos para cuidar e marido que só pede e reclama e não ajuda em nada. E começou mal a quarta, lista cheia de coisas a fazer, na saída do supermercado perdeu a lista, voltou, procurou, pediu ajuda aos funcionários, nada. Sem a lista algo importante ficaria para trás, puxou pela memória, alguns compromissos lembrava, não todos, foi a última gota de lágrima que fez entornar seus olhos, voltou para casa, hoje, o marido vai ouvi-la reclamar e pedir, e ele que trate de ajudá-la.




segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Iniciação à Palavra em Prosa.

Este é o tema da oficina que a minha querida amiga Eliana Mara Chiossi dará sempre às quartas feiras, das 19h até 21h e 30min, a partir do dia 17 de Agosto de 2011 e que se estenderá até o dia 14 de Dezembro de 2011 na Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre. Serão trabalhados textos em prosa com ênfase em conto, crônicas e artigos. As inscrições estão abertas, apressem-se, há poucas vagas e é "de grátis". Estarei lá, para a felicidade dos meus teimosos leitores, finalmente terei a oportunidade, rara, de aprender a escrever e brindar meus leitores com textos menos sofríveis, um pouco melhor escritos, legíveis e compreensíveis. O lado ruim é que aqui farei as minhas experiências com texto, o que é preocupante, pois não faço a menor ideia do perigo que isso representará à mente de quem ousar me ler de agora em diante. Oremos.

domingo, 10 de julho de 2011

Nem o Dia, Nem a Noite.

Se tivéssemos um Código Emocional, como temos o Código Penal, que relacionasse os crimes emocionais que as pessoas cometem teríamos um ou mais artigos que puniriam a simplificação da vida e das relações humanas.
Viver e se relacionar com pessoas não é fácil, não é simples, não podemos tentar fazer destas experiências algo de fácil compreensão, tentar entendê-las à luz da nossa experiência e pensar que uma ordem verbal, nossa, mudará nossa vida ou de alguém para melhor, solucionando nossos ou seus problemas.
Vida é grande, complexa, subjetiva, caótica, ilógica, humana. Errado tentar vê-la apenas como um dia se contrapondo à uma noite, cor preto ou branco, zero e um, triste ou feliz, casa ou separa, ter ou não ter filhos.
Viver é para especialista, capaz de se equilibrar em uma corda fina e bamba sendo sacudida por vento que está sempre tentando sair debaixo da pessoa, cena acompanhada por uma platéia que torce pela vitória, ou do equilibrista, ou da corda, ou daquilo que nem imaginamos haver entre os dois.

domingo, 26 de junho de 2011

Movendo Palhas.

No meu trabalho realizo pequenos gestos, vendas baratas que não passam de centavos de Real, alcanço peças pequenas que estão à minha mão. Não faço esforço, não me custa nada, não me cansa.
Na vida, gestos não são atos isolados e insignificantes, tudo está ligado de uma forma ou outra. Meus gestos, aparentemente triviais, podem representar muito a quem está à minha frente comprando, porque esta pessoa pode necessitar de uma peça pequena e barata, que faz funcionar um aparelho hospitalar que salva vidas, ou um brinquedo que entretém uma criança, ou um aparelho auditivo que faz um deficiente ouvir.
É comum receber cumprimentos exagerados por pequenos atos de venda que realizo, demorei para me dar conta do contraste que há entre o meu pequeno esforço e a enorme gratificação do cliente.
Há de se pensar no significado de cada gesto que fazemos e pensar, também, na importância que há nas nossas inúmeras pequenas omissões diárias, palhas leves que se movem apenas com um olhar e que constroem ou destoem vidas.